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ANTÓNIO LOBO ANTUNES - DA NATUREZA DOS DEUSES

R.Colini

ANTÓNIO LOBO ANTUNES - DA NATUREZA DOS DEUSES

Lobo Antunes é um mestre em traduzir as angústias dos personagens...

“– Jesus decidiu fazer sofrer as mulheres
            e, porque Jesus um homem, não admira, salvo o devido respeito, e não desejando ofendê-Lo, que estranho fazer sofrer as mulheres ordenando-lhes sê o palhaço do teu marido, a cadela, a puta, a cabra, agrada-lhe, obedece-lhe, aceita, crucifica-te na cama quando ele te ordenar
            – Deita-te”

 

É quase impossível extrair um trecho de Lobo Antunes. Cada pequena e poderosa imagem de que é constituído um livro seu é parte de uma tecedura de que é difícil arrancar um fio somente.

Os personagens falam através de coisas e bichos. Lobo Antunes é um mestre em traduzir as angústias dos personagens em um fluxo criativo impossível para um simples mortal, transformando em poesia pequenos detalhes de coisas: um vaso trincado, retratos de parentes na parede, velhos relógios dependurados, corredores, a escuridão, um vira-latas, as árvores, o mar. Sucessões brilhantes em que é difícil pinçar uma dessas imagens fora do conjunto.

Como a cena em que um personagem observa os olhos aflitos de um tigre enjaulado no circo, decrépito, infeliz e solitário, tigre e personagem uma mesma coisa. No fundo de sua existência miserável, o tigre:

“– Ai de mim.
Antes de cerrar as pálpebras por dentro com chaves ferrugentas”.
 
            São parecidos – tristemente parecidos –, Portugal de Antunes e o Brasil da senzala, filhos da ilusão de grandeza e da farsa: o grande oceano e a cordialidade sensual.
            Herdeiros da latinidade ibérica, lidamos com nosso pecado original de forma semelhante: destruindo o passado, aniquilando o futuro e consumindo o presente até a consumação. Para o protagonista, só tem valor aquilo de que pode se apropriar; e que seja só para ele.
Assim é o Senhor Doutor, dono de bancos, de fábricas e do país inteiro. Sua filha não é sua filha, seus netos não são seus netos, e o país só é o país enquanto ele viver.
Senhor Doutor sabe que possui um defeito atávico. Nos breves momentos que reflete sobre aquilo que lhe falta, quase chega a chorar. Súbito, esquece essa fraqueza e se vinga, acumulando um poder inesgotável, praticando o autoritarismo dos coronéis, escravizando, humilhando, ofendendo a todos que toca e legando um deserto emocional a todos que cruzaram seu caminho.
Em seu harém, escolhe um escravo reprodutor para cobrir suas mulheres e amantes. Cuida, com planejamento de mestre, para que os filhos de seus subalternos sejam filhos de quem ele escolher. Terceiriza a traição com a marca daquilo que pode ser mais indelével e cruel em uma sociedade atrasada e paternalista: a disseminação da bastardia.
Em um momento ele pede a Marçal:
diz quem é meu cachorro, Sou eu, responde Marçal. Ele insiste, quer ouvir a frase inteira e Marçal responde, Sou seu cachorro, Senhor Doutor.
Vale dizer que a única pessoa que Senhor Doutor gosta e por quem sente algo mais que ódio, é o próprio Marçal.
“Simpatizo consigo Marçal”

 

Senhor Doutor é íntimo do ditador, e o dinheiro que ganham juntos em negociatas medonhas é mera consequência de sua única ideologia: o poder e a liberdade de tiranizar.

Olhar para o nosso passado, refletir sobre o presente, encontrar esses traços comuns com um oceano de distância é instigador.

Lobo Antunes é sempre um autor difícil, e a melhor maneira de chegar nele é iniciar pelos primeiros livros, Memória de Elefante e Os Cus de Judas, e assim ganhar fôlego para os livros mais recentes. A maneira como ele cria imagens poderosas não é coisa desse mundo. Deve ter feito um pauto na encruzilhada. Dá vontade de amputar as mãos e desistir de escrever.

 

É inevitável lembrar de Ruy Guerra, no FADO TROPICAL:

 

"Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano
uma boa dose de lirismo... (além da sífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas
em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..."