MACHADO DE ASSIS – DOM CASMURRO | FELLINI - ENSAIO DE ORQUESTRA
Marcolini diz que o mundo é uma ópera montada sem ensaios prévios.
D. Casmurro - Cap. IX - A ÓPERA
Clássicos são o que são. Tenho quase certeza que Federico Fellini não leu Machado (10 páginas do google italiano, e niente). E, no entanto, os gênios estão aí para isso mesmo. Ensaio de Orquestra é um de meus filmes preferidos de Fellini.
A ideia sensacional do filme possui um parentesco muito legal com o capítulo insuperável de Machado. Em um momento (no spoiler) do filme, algo dramático acontece. Fellini dizia que era uma metáfora sobre a destruição da cultura. Ou dos valores humanos. Muita gente considerou que a cena representava a intervenção de Deus. As duas interpretações funcionam: e faça-se a confusão.
Em Dom Casmurro, Marcolini diz que o mundo é uma ópera, montada sem ensaios prévios, escrita por Deus e composta pelo Diabo, com direito a repartição dos direitos autorais. E valhamo-nos de confusão, enquanto o mundo perdurar.
“– Mas, meu caro Marcolini…
– Quê?…
E, depois de beber um gole de licor, pousou o cálix, e expôs-me a história da criação, com palavras que vou resumir.
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro...
Rival de Miguel, Rafael e Gabriel3, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele, expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros – e acaso para reconciliar-se com o céu -, compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
– Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés…
– Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.
– Mas, Senhor…
– Nada! Nada!
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
– Ouvi agora alguns ensaios!
– Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com efeito, há lugares em que o verso cai para a direita e a música para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso.”
...
“– Esta peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade astronômica. O êxito é crescente. Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais, que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: “Muitos são os chamados, poucos os escolhidos”7. Deus recebe em ouro, Satanás em papel.”
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