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PABLO DE SANTIS – OS ANTIQUARIOS

R.Colini

PABLO DE SANTIS – OS ANTIQUARIOS

Está tudo esquecido. Viver é esquecer, e viver muito é esquecer muito.

Os antiquários, Pablo de Santis:

“... e dei prosseguimento ao meu comércio de primeiras edições, gravuras e ex libris. Continuo fazendo isso até agora. Um sebo é um bom refúgio: ninguém vê. Atrás dos livros e das estantes, do pó que flutua, feito de papel, tinta e palavras volatilizadas, ninguém me vê.
...
– Está tudo esquecido. Viver é esquecer, e viver muito é esquecer muito.”

 

“Mas de repente algo em mim compreendeu que tinha sido um erro sair, que devia ter ficado com ele no quarto, que devia tê-lo libertado. Sabia que não era Marcial, mas tinha tantas perguntas para lhe fazer; naquele instante de confusão ele era para mim um mensageiro vindo de muito longe, um tradutor especializado numa língua tão difícil, tão desconhecida e remota, que qualquer palavra, mesmo uma simples saudação, poderia ser recebida como uma dádiva.
Voltei à escada. Tinha de conseguir a chave do quarto e abrir a porta. O desconhecido havia exibido o passado como um jogo de tabuleiro e agora me esperava para jogar. No primeiro andar tive de me sentar nos degraus. Apoiei a cabeça contra o papel de parede, que cheirava a umidade e podridão. Aquilo não era um edifício, era o cadáver de um edifício.”

1984, George Orwell

“Quem controla o passado, controla o futuro.
Quem controla o presente, controla o passado.”

 

Tema algum resiste à literatura; todos os clichês podem ser superados.

Os Antiquários prova isso. Prova que o estilo e a inteligência sempre podem mais.

O autor se arrisca a escrever um livro sobre vampiros, transportando esse mito para Buenos Aires da década de 50, onde a sede de sangue vai muito além do banal em histórias do mesmo tipo.

Você já manuseou um livro com defeito de corte, com duas ou mais páginas coladas, porque a guilhotina da gráfica provavelmente deu defeito, o que nos obriga a separar as páginas com uma faca ou estilete, com cuidado, para não estragar o livro? Ou agimos assim, ou jamais saberemos o que está escrito entre as páginas.

Por 3 ou 4 vezes isso é mencionado, e essa é uma das chaves da obra. Não se preocupe, isso não é spoiler, porque o autor deixa essa interpretação para os leitores.

O que está por trás das páginas coladas é do mesmo feitio daquilo que se esconde nas entrelinhas. O mero esforço de usar um estilete para revelar a página que está oculta é um convite para a reflexão sobre o que se encontra em cada linha, em cada página, no livro inteiro. As páginas não precisam estar coladas: vale para toda leitura.

De Santis supera o banal com uma narrativa excelente, que permite a leitura rápida, mas que promete – e entrega – desdobramentos que somente os bons livros são capazes.

Os vampiros são todos antiquários, e sua maldição é o presente, que apaga com voracidade o passado. A escolha dessa profissão não é intencional; não é uma espécie de seita ou obrigação para os vampiros. É como se fosse uma danação. Sua maldição não é a eternidade. Pelo contrário, gostariam de tacar fogo nas bibliotecas, mas são uma espécie de tutores inconscientes, estão condenados a lidar com memórias de tempos longínquos que são esquecidos com a velocidade de um suspiro.

Um dos inimigos dos antiquários-vampiros é uma entidade pública, burocrática, totalitária e inimiga da história. De forma provocante, um professor de universidade também é um dos que querem destruir esses seres de memória remota.

As instituições querem viver o presente. O passado é perigoso. A verdadeira imortalidade é a história, mas essa move-se para trás. Esse é o problema desses seres de futuro incerto e que se entendiam no presente.

Os próprios vampiros mal percebem que, se houver um futuro, se a civilização suportar a barbárie, esse futuro só poderá ser feito do legado das memórias.