PERSONAGENS DE PAPEL E DE CELULOIDE
Cada um na sua: os infinitos e os imortais.
CARLOS FUENTES – A CABEÇA DA HIDRA – A CAMPANHA
FELLINI – A DOCE VIDA
Em a cabeça da hidra:
“O cinema se tonou para Félix Maldonado contraponto e nêmeses da economia. Uma ciência abstrata, triste e afinal inócua quando revelava sua verdadeira norma dogmática, a única opinião que se serve de números para se impor. O cinema é uma arte concreta, alegre e afinal enganosa quando demonstra ser tudo menos arte: um simples catálogo de rostos, gestos e coisas absolutamente individuais, nunca genéricas.”
Como você imagina o rosto de Raskolnikóv? Como seria, se você encontrasse na rua, cruzando seu caminho, Riobaldo? Nesse caso, tudo bem, é quase impossível não pensar no Toni Ramos. Mesmo quem não gostou da série da TV, a imagem do ator gruda na gente, e quando relemos o livro é difícil não pensar mais nisso...
Carlos Fuentes usa um personagem da literatura para contrapor a economia (sua área de formação) ao cinema (sua área de adoração).
Cada leitor vai imaginar esse Félix Maldonado de forma diferente, e a ele atribuir desejos e sentidos ocultos. Os personagens da literatura são infinitos.
Enquanto os do cinema são escravos do rosto. Mas isso não é ruim. Porque, afinal, o que pode um rosto? O que pôde Marcello Mastroianni sob Fellini, Scola ou Monicelli? Othon Bastos sob Glauber? Personagens imortais e inesquecíveis.
Talvez isso ajude a gente a evitar comparações entre livros e filmes. Cada um na sua: os infinitos e os imortais.
Em A CAMPANHA, também do Carlos Fuentes, ele descreve uma personagem:
“Os movimentos da dança, os langores crescentes, a crescente nudez desse corpo esbelto, quase infantil, mas dominado por uma máscara cuja força eram a boca – vermelha como uma ferida – e as sobrancelhas – negras como um látego – soletravam um nome, Gabriela, Gabriela Cóo, desejada, desejável, prometedora...”
Ou Mark Twain em AS AVENTURAS DE HUCKLEBERRY FINN
“O cel. Grangerford era muito alto e muito magro, e tinha uma tez morena-pálida, sem uma vermelhidão em parte alguma; barbeava-se todas as manhãs, tinha os lábios muito finos, as narinas muito finas, um grande nariz, nas órbitas que pareciam estar olhando para a gente de dentro de cavernas, por assim dizer. A testa era alta, e o cabelo preto e liso caindo-lhe sobre os ombros. Suas mãos eram compridas e finas, e todas as manhãs ele mudava uma camisa e um terno completo, da cabeça aos pés, feito de linho tão branco que fazia doer a vista.”
Entre os imortais e os infinitos, há esse liame em que o narrado ou o filmado encontram uma forma de expressão que nenhuma vírgula ou nenhum take pode ser subtraído, porque o diretor ou o escritor atingiram algo que nos parece perfeito.
Marcello se aproxima de Anita Ekberg na Fontana de Trevi. Ele para e contém o impulso de tocar seu rosto, seus ombros, seu colo nu. Ela é toda sua, mas ele não é capaz de encostar as mãos em seu corpo; elas se detêm como em prece, como se tocando-a, quebrasse o encanto absoluto que ela exercia naquela noite. Ela é uma deusa; ele um homem que não ousa quebrar a magia da divindade.
Em A CAMPANHA, há um momento semelhante:
“... e nos contou ao descrever o episódio, de que sua emoção amorosa dependia de uma distância, de uma ausência, da intensidade do manifesto desejo por uma mulher a quem não podia tocar, para quem olhava de longe, e que naquele momento, assim como Ofélia, desaparecera sem comparecer ao encontro combinado, não com ele, mas com o Sol e a Lua...”
Dos personagens que pulam dos livros para o cinema, ou das cenas literárias que existem em certos filmes, eu acredito que um livro espetacular jamais dará um filme da mesma envergadura, assim como a poesia de certas cenas nunca serão perfeitamente descritas em palavras. Mas confesso que, quando gosto muito de um livro, não procuro sua versão cinematográfica. Prefiro manter o rosto que eu mesmo escolhi para os personagens. Pretendo ler em breve Laranja Mecânica. Prometo postar, para ver se continuo com a mesma opinião.
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