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SOBRE O FOGO, SOB A ÁGUA

R.Colini

SOBRE O FOGO, SOB A ÁGUA

No Rio de Janeiro, um jovem oficial do exército embarca para o sertão da Bahia, onde vai combater os inimigos da República entocados em Canudos.

No Rio de Janeiro, um jovem oficial do exército embarca para o sertão da Bahia, onde vai combater os inimigos da República entocados em Canudos. Sua empolgação é compartilhada pelos camaradas que, a cada dia da jornada, tornam-se mais unidos e irmanados no orgulho de combater pela pátria, sob o olhar agradecido do país.

A partir do momento em que chegam ao teatro da guerra, nada mais é como deveria ter sido em seus anseios de heroísmo.

No caos da primeira batalha que enfrenta, no corpo a corpo encarniçado, o jovem oficial depara-se com um mundo invertido.

Romance escrito através de velhos e amarrotados pedaços de papel obtidos na cena da guerra, onde o oficial escreveu, em francês, uma espécie de diário do absurdo. Teve seus motivos para não deixar seu testemunho em português.

A mim coube apenas reproduzir o que ele escreveu em circunstâncias extremas, como tudo mais nessa guerra. Pessoalmente, acredito que esse episódio, essa guerra medonha, deva para sempre ser revisitado. Assim, quem sabe um dia possamos compreendê-lo melhor, ainda que quase tudo de sua história tenha restado sob cinzas ou água.

 

“Nossos homens realizaram um avanço pequeno, de uns 300 metros, para dali observarem mais de perto o amontoado de taperas e as duas igrejas, bem em frente. No dia anterior, ninguém comentara esse movimento, que parecia ser uma missão de reconhecimento, e foi uma surpresa, para nós, ver as tropas amoitadas na direção de Canudos.”
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“Percebemos então, entre as sombras perenes de árvores e rochas que o sol iluminava, que aquelas outras, semoventes, eram feitas de vultos que se arrastavam em direção à tropa, tão lentos que, de onde estávamos, só com muita atenção percebíamos a direção do movimento. Era impossível que aquilo fosse um ataque, e os oficiais perceberam que aqueles que chegavam eram os primeiros que se rendiam, um cortejo em que os defuntos carregavam a si mesmos.”
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“Por essa época, eu perambulei no acampamento da expedição, enganando os oficiais superiores. A desordem que imperava me permitiu que, quando abordado por um superior, inventasse que estava em missão de um outro, de patente maior, e assim por diante. Eu seguia de mentira em mentira, vagando sem propósito entre o emaranhado de gente diversa, enquanto a batalha não acontecia, o volume de gente acampada crescia e os suprimentos escasseavam.“
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“Escrevo deitado de lado, em completa escuridão, enquanto os outros dormem. Ninguém pode desconfiar que sei escrever – e que escrevo. Com a mão esquerda, tateio os limites da folha para dar a retidão da linha à mão direita. Com leveza, para não fazer ruído com a grafite sobre as folhas ásperas – e também para economizar o único lápis... “   
“... Talvez um médico dissesse que faço isso para manter a sanidade. É que ele não esteve em Canudos. Ele não está em Canudos. Eu moro em um barraco fétido a 50 metros de onde vive Antônio Conselheiro.”
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“Dez minutos depois, o ajudante retornou com dois prisioneiros. Três não havia no momento; eu sabia o motivo. Um deles era baixo e atarracado, um espécime clássico dos jagunços. O outro, embora pelo rosto não destoasse do primeiro, era excepcionalmente alto. E magro. O trio de estudiosos achou que a entrega chegara melhor do que a encomenda; melhor do que podiam esperar. Não vieram três, mas dois, porém, de diferentes origens e constituição, e isso viria a calhar para o que pretendiam.” 
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“Quando começou a escurecer, reuni coragem para passar a mão onde a cabeça latejava, e sob a casca de sangue seco, algo macio cedia à pressão de meus dedos. A angústia me dizia que minha cabeça estava aberta, porém, a incredulidade me lembrava que, se meus miolos estivessem para fora, eu não poderia fazer o que estava fazendo; eu já nada seria.”
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“O homem que eu conhecia riu. Naquele momento eu recebi o nome com que seria conhecido por aqui: Chico Mudinho, mas que quando eles falavam era Chico Mudim. O fantasma de olhar duro devia ser um dos comandantes, e naquele dia eu não imaginava que fosse João Abade, um dos alvos mais cobiçados por cinco mil soldados que se reuniam a poucos quilômetros dali.”