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A perfeição em uma frase - I

R.Colini

A perfeição em uma frase - I

Os livros são um cabedal infinito de coisas novas ditas há tanto tempo, que quanto mais os devassamos, mais finitos nos sentimos.

Os livros são um cabedal infinito de coisas novas ditas há tanto tempo, que quanto mais os devassamos, mais finitos (nós, os que tentamos escrever) nos sentimos.

Leio bastante, por vício e necessidade vital. A ponto de procurar ansioso por novos autores, uma vez que, daqueles que me entortaram as canelas, já li quase tudo.

O quase tudo do Kafka, eu avancei um pouco mais com o livro de contos reunidos, Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias. Saiu agora, em 2018. Tradução de Marcelo Backes.

Tem uma passagem em que o grito grita.

Vamos tentar fazer um personagem falar alto.

Ele GRITA, ele BERRA, ele diz alto o suficiente, interrompe exaltado, vocifera, hipnotiza com sua voz grave de fera contida? A começar pelas maiúsculas – o maior clichê do zap e do twitter –, tudo parece pobre diante do incontrolável dom da sinestesia de alguns caras.

Em determinada passagem do conto “Conversa com o Devoto”, tive a impressão que o personagem gritava diante de mim. A capacidade de saltar do texto para os sentidos é um espetáculo que justifica a busca incessante das coisas novas que só cabem em um livro.

O recorte pode não fazer justiça, uma vez que ele faz parte do ambiente do conto. É necessário estar no meio do conto. Mas vou tentar.

O narrador segura um personagem pelo braço no meio de uma praça, no momento em que as pessoas saem do trabalho. Por enquanto, imaginamos a azáfama do final da tarde, já escurecendo, e as multidões em direção ao transporte público ou vencendo rápido e a pé o caminho para casa.

A pessoa que ele agarra quer fugir, mas o narrador, sádico e determinado, não vai deixar isso acontecer.

“– Sim – disse eu –, quero lhe perguntar algumas coisas, meu senhor; na última vez conseguiu fugir de mim, mas isso hoje será bem difícil.
– O senhor é compassivo, e me deixará ir para casa, meu senhor. Sou digno de pena, esta é que é a verdade.
– Não – gritei em meio ao barulho do bonde que passava. – Não vou deixar o senhor ir. São justamente histórias assim que me agradam. O senhor é um peixão e tanto. Dou os parabéns a mim mesmo.”

 

Nesse momento deu a impressão de que ele gritava comigo.

“– Não – gritei em meio ao barulho do bonde que passava...”

Não nos enganemos com a aparente simplicidade, pois é uma frase consciente, arduamente trabalhada e lapidada com o cinzel que esses caras, como ninguém, usam para entortar nossas canelas. Deu para ouvir daí?